A lição da Tété

1987. Dia após dia, ano após ano. Persistente, teimosamente. Primeiro não percebemos. Depois estranhamos. Por fim, entranhou-se-nos pela consciência cultural adentro. Agora, vinte anos depois da foto, vinte e cinco anos depois do Chapitô, devemos olhá-la, à mulher-palhaço, e pedir-lhe desculpa e dar-lhe um beijo de agradecimento.

Pedir-lhe desculpa porque só agora percebemos este olhar seguro com que levantava a cabeça para o destino. Esta determinação com que empunhava a vassoura. Esta autoridade com que pisava o lixo que lhe atrapalhava a marcha.

Dar-lhe um beijo de agradecimento. Pela lição que nos deu, pobres prisioneiros do real, descrentes das extraordinárias possibilidades que aguardam em nós pela coragem de acreditarmos.

Houve, é claro, antes daquelas duas datas, todo o caldo de cultura em que a Teresa Ricou nasceu, cresceu e se formou. Se as procurarmos, se nela bem procurarmos, lá as encontraremos: as raízes em África, as pegadas na Londres dos anos 60 e na Paris dos anos 70, a experiência inaugural que Vilar de Mouros constituiu no jardim a preto e branco de Salazar e Caetano.

Veio depois a multiplicidade de caminhos abertos pela (esperança da) Revolução. E sobretudo, permitam-me que sustente, os anos que se seguiram à ressaca daqueles que outro desfecho esperavam do PREC. Esses que, em vez de baixarem a cabeça, pousarem a vassoura e procurarem o conforto das alcatifas, avançaram, decididos, precisamente então, rumo ao futuro. Um futuro solidário.

Na mesma direcção, afinal, para que apontava o passado das raízes de humanidade em África, das pegadas culturais na Europa civilizada, do sonho da liberdade, da igualdade e da fraternidade plenas no (então) país das pessoas tristes (Manuel António Pina). Um futuro construído dia após dia, ano após ano. Persistentemente, teimosamente.

Adelino Gomes

Jornalista desde 1966 com passagens pela Rádio (até 1987). Televisão (1975/6) e pelo jornal Público (de cuja equipa fundadora fez parte). Numerosas reportagens, entre as quais as do 25 de Abril de 1874, e do 11 de Março, do início da guerra civil em Angola e das primeiras incursões indonésias em Timor-Leste, em 1975.

[Novembro de 2006]