Uma Experiência Exemplar
Vinte e oito anos depois do 25 de Abril, temos algumas dificuldades em imaginar tudo o que se transformou. O que está converte-se numa espécie de evidência e encobre por completo aquilo que foi. A verdade é que nos custa conceber a simples possibilidade de alguém (relato uma experiência pessoal) querer entrar numa Faculdade acompanhado por uma colega que vestia calças e serem os dois impedidos, em nome dos bons costumes, pelo contínuo que estava à porta. E contudo, no curto-circuito das nossas existências, o 25 de Abril foi ontem. Tudo mudou, e no entanto não sentimos por dentro o tempo dessa mudança.
Isto é manifesto em todas as áreas da nossa vida – como mudaram os hábitos, como mudou a cena literária, como mudaram as formas de consumo, como mudou a vida de província, como mudaram as práticas quotidianas dos jovens, como as tecnologias alteraram o nosso quotidiano (desde o levantamento de dinheiro nos bancos à linha verde, passando pelas mensagens nos telemóveis), como mudaram as escolas, as praias, os aeroportos, os modos de viajar, as formas de namorar, as músicas que ouvimos ou a televisão que vemos. E, no entanto, sentimos que no modo profundo de se ser português há muito ainda de continuidade e persistência, mesmo de obstinação: as nossas virtudes e os nossos defeitos mantêm-se no essencial. Podemos acentuar, numa perspectiva optimista, as grandes inovações, ou podemos dizer que nada mudou (seja num conservadorismo exacerbado, que vê sempre as determinações mais profundas, seja num radicalismo desmedido, que tende a dizer que na ausência de uma revolução, tudo ficou como estava, ou tudo seguiu o seu curso normal como se o 25 de Abril não tivesse chegado a existir). Qualquer hipótese é possível e defensável.
No domínio cultural, as transformações foram profundas, quer no sentido amplo da expressão (as normas e valores que os portugueses incorporaram), quer no sentido mais restrito em que nos referimos sobretudo às estruturas e infraestruturas culturais. No meio de muito folclore, de alguma ideologia hoje amarelecida, de momentos de estatização e centralismo e de reacções localistas destemperadas, assistimos a uma alteração profunda que passou acima de tudo pela criação de um verdadeiro, e julgo que definitivo, Ministério da Cultura (para o qual contribuíram, entre outros a quem o tempo escasseou, como Helder Macedo, António Reis ou Lucas Pires, essencialmente Teresa Gouveia e sobretudo Manuel Maria Carrilho). E passou também pela consciência crescente de que as autarquias têm um papel fundamental num processo de descentralização.
Pela minha parte, gostaria de acentuar três grandes tendências. Em primeiro lugar, verificou-se uma enorme internacionalização da cultura portuguesa, através de iniciativas múltiplas, que se iniciaram com a Europália, passaram pela presença de Portugal em Frankfurt e culminaram no Salão do Livro de Paris, e têm como contraponto nacional a Expo 98 e Lisboa e Porto como capitais europeias da cultura. Tendo-se iniciado sobretudo no âmbito do cinema e das artes plásticas, (neste caso através da mediação ibérica), e também da literatura, este movimento foi-se alargando a todos os sectores e é hoje em muitos domínios um dado adquirido e estabilizado, de tal modo que os jovens autores de ficção são imediatamente “descobertos” em termos internacionais mal acabam de publicar o primeiro livro (como se verificou com Pedro Rosa Mendes ou José Luís Peixoto). É assim que a nomes indiscutíveis como Fernando Pessoa, Amália ou Vieira da Silva se juntaram Emmanuel Nunes ou António Damásio, Lobo Antunes ou José Saramago, Siza Vieira ou Paula Rego, Maria João Pires ou João César Monteiro, Eduardo Lourenço ou Paulo Nozolino, Jorge Molder ou Vera Mantero, João Fiadeiro ou Paulo Ribeiro, Manoel de Oliveira, Maria de Medeiros ou Luís Miguel Cintra. Em segundo lugar, verificamos que em Portugal surgiram inúmeras iniciativas jovens que são sintoma de uma verdadeira criatividade em todos os sectores. Nas artes do espectáculo mas também nas artes visuais, na ciência ou na literatura. Diversas revistas de estatuto mais ou menos “marginal” (como “Número” ou “Ideias Fixas”) contribuíram para a criação de uma sensibilidade jovem de tipo europeu e americano, que pretende pensar o mundo através de pressupostos inteiramente diferentes dos da geração anterior: Paulo Cunha e Silva, Pedro Lapa, Carlos Vidal, Teresa Cruz, Helder Coelho, Alexandre Melo, Pedro Gadanho, Hermínio Martins, José Gil ou Bragança de Miranda são alguns dos nomes que na área da reflexão tentam pensar esta mudança. Mas essa criatividade irrompe hoje, para o bem ou para o mal, em múltiplas formas organizativas, algumas instáveis outras já consolidadas. Em terceiro lugar, podemos dizer que a presença feminina na criação contemporânea portuguesa é cada vez maior, com tudo o que isso traz na renovação das formas de expressão e de pensamento.
Gostaria de incluir Teresa Ricou e a experiência do Chapitô no enredamento destas três tendências. Conheci Teresa Ricou mais de perto logo a seguir ao 25 de Abril, na altura em que ela aparecia como a “mulher-palhaço”, caso inesperado de alguém que tinha escolhido o mundo do circo (em vez de ser o mundo do circo a escolher, como é costume) para trabalhar e transformar. Era um estatuto simultaneamente atractivo e assumidamente secundário na cena cultural portuguesa. Mas o que me impressiona é que Teresa Ricou perseguia um sonho, e, com inúmeras dificuldades, conseguiu concretizá-lo: o que é hoje o Chapitô, e a multiplicidade de serviços públicos que ali se concentram, corresponde a um misto surpreendente de ingenuidade, paixão e sentido pragmático. Porque são essas as caraterísticas de Teresa Ricou: conseguiu com o Chapitô misturar a eficiência da gestão com a loucura de projectos quase sempre imprevistos e improváveis. Como se sabe, não é com projectos destes que as pessoas enriquecem e passam a viver dos rendimentos. Os que vociferam contra a dependência dos subsídios parecem imaginar que as pessoas vivem à sombra dos subsídios. Não é o que sucede na maior parte dos casos. As pessoas trabalham desalmadamente, esgadanham-se para fazerem o melhor, perdem mil energias na procura de apoios, têm grandes momentos de desespero, sofrem com as descontinuidades administrativas ou o não cumprimento de promessas. E há cada vez mais a consciência de que iniciativas deste tipo não podem, por motivos estruturais, ser rentáveis. Espero, portanto, que o Chapitô continue a merecer a atenção dos nossos responsáveis culturais, porque poucos conseguem fazer, como Teresa Ricou, esta mistura de integração das margens e marginalização do institucional, que são fundamentais para que não deixemos à deriva muitos dos jovens dos nossos dias.
<< Eduardo Prado Coelho >>