Senhora da branca saia
A qualquer um a arte de lembrar faz partidas: escolhe, esquece, transforma e jura ao mundo: «Foi assim, eu bem vi, estava lá.» Salvo omissão improvável, conheci a Teresa Ricou quando ela fugiu para Paris nos anos quentes (ou frios?) da emigração, em que não se podia subir St-Michel sem encontrar pelo menos metade dos lusitanos do Bairro Latino, a abrilhantar os cafés onde, por entre outras práticas, se matavam saudades do maldizer nativo entre as brumas da memória ó Pátria sente-se a voz dá lá Saudades ao compatriota meu pobre Chico, meu pobre Chico e uma ajuda Só, Nobre António Padre Nosso. A imagem que de memória pinto da Teresa Ricou é invulgar como ela e mais insistente fica quando entre gentes desse tempo se matam saudades (que outros crimes o nosso bom coração não permite): a inacreditável saia branca, a branca saia de baixo das nossas bisavós a que a lixívia dera a secura da Cal dos Muros*, vestida pela Teresa Ricou, era a bandeira da raiva que sentíamos pela deserção de um amigo querido, o Novais Teixeira, enterrado nesse dia. De humor fino e discretamente triste. Imagino-o a esta distância uma espécie de patriarca dos paisanos que Boulevard acima Boulevard abaixo passeavam entre as árvores da saudade e do desconforto o seu cãozinho mal estimado que tinha por nome Exílio. Outros me apeteceria agora ver como altas figuras desse tempo e lugar, a dulcíssima Maria Lamas, o Escada que foi o pintor mais inteligente da sua geração, o António Dacosta desertor da sua guarita de sentinela de um St-Germain já riscado da história para, a curtir no campo a melancolia da ilha e tornado homem casado e pai de família, papel que desempenhava com toda a seriedade. Quando a Paris tornava, uma tarde ou outra, queixava-se do irrespirável ar da cidade, o que em disfarce açoriano significava o mal de estar que usa o nome de saudade para temperar o gosto da solidão, aí-dão aí-dão.
Revejo a Teresa Ricou, o busto erecto a sair da sua saia-bandeira, branca, incrivelmente branca, muito mais branca do que a que mais tarde usaria para compor a imagem da Tété, personificação do apetite doido de assumir em espectáculo público a nossa humana condição de palhaços pobres. Uma bandeira vermelha era a Tété da saia branca, saudade não de pedra, como a do Cais do Outro, mas comprada ou subtraída de banca de roupa usada, numa das Feiras da Ladra dessa cidade que todos haviam começado por sonhar e muitos acabariam a detestar, mastigando a exclusão como raivinhas de dentes. Com a explosão do 25 de Abril, a Teresa Ricou dispara para Portugal e, puro acaso, dou com ela em Tavira num circo ambulante que ali acampara e em que ela vinha alistada. Encontro quente ao sol do Verão, e grande foi a festa que nos fizemos. Em torno à mesa da esplanada onde, cigarras da esperança, todos ou quase falávamos ao mesmo tempo rondava um ser a olhar-nos com visível sentimento de curiosidade e desconfiança. Até que a Teresa deu por ele, e com o ralhar doce que é a sua maneira de falar com o mundo, interpela o homem que logo a seguir nos apresenta como pertencente ao dito circo, seu chefe ou membro responsável: «Então, pá, andas à volta e não dizes nada?» À interpelação sucede a resposta: «Pois que você estava aí com o J’us-Cristo!» Esclareça-se que, na base de dados do homem, o J’us-Cristo era encarnado por mim, a barba e os cabelos compridos que assim o ditavam os usos desse tempo.
Era um miserável circo ambulante, com supostas irmãs que mudavam de apelido e nacionalidade conforme os números que exibiam, preenchendo quase todo o espectáculo, um faquir patriota orgulhando-se de ter nascido em Faro, e outra estrela anunciada como o mais jovem domador do mundo nos seus trinta anos bem contados a não contar bagaços e bejecas, de barra de ferro em punho a amestrar à porrada um bicho já grandote que havia sido comprado na qualidade de leoazinha Elsa, mal acabada de desmamar. Tendo esta crescido o devido, apareciam-lhe no traseiro, a seguir ao ânus e caminhando para baixo, duas insuspeitadas bolinhas de um cinzento-escuro, adereços inusitados na habitual condição feminina.
Depois deste episódio, novo encontro de acaso com a Teresa Ricou, sempre activista, mas agora de género mais fino, com lugar assente (que muito não duraria) na então existente Secretaria de Estado da Cultura onde ela iria cuidar de um projectado Instituto do Circo (não sei se assim se chamava nem se alguma vez veio a existir).
A dita Secretaria era sediada na Avenida da República, entre o Saldanha e o Campo Pequeno, e de vez em quando eu ia lá buscar para um almoço de mata-saudades a Maria Velho da Costa, então também funcionária da mesma Secretaria (sendo que a escritora, se a memória não me faz das suas, estava lá por empréstimo, dado que o seu lugar era nas Pescas). Foi no curto tempo em que Maria de Lurdes Pintasilgo governou: Teresa Ricou progredia e os seus sapatões desmesurados de palhaço precisavam-lhe o caminho de agitadora de gentes. Ou de mãe consoladora?
Entra depois o Chapitô e o mais que suponho já no conhecimento público.
Senhora da Branca Saia rogai por nós
A diferença afinal está só no cós
Dona do Bem Querer a ti me junto
Com dois de vinho
E uma de presunto
* Título do livro de poemas de António Dacosta publicado postumamente pela Assírio & Alvim
(DESENHOS DE JÚLIO POMAR FEITOS EXPRESSAMENTE PARA A CAMPANHA DE ANIMAÇÃO DA INAUGURAÇÃO DO MUSEU DE MIRANDA DO DOURO)
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