SAUDEMOS A NATUREZA,
COM A TAL FORÇA DE TODOS OS CRUZAMENTOS,
COM TODA A ENERGIA DE FECUNDA VERDURA
Chuvas abundantes trouxeram o caos, mas também mitigaram a situação de seca extrema – neste carrossel de incidências, para o qual nós humanos também contribuímos, tem de crescer a consciência de que o destino da mãe Terra e dos seus filhos é comum.
A luz permanece, mesmo no mais invernoso tempo, confirmando a simbologia do solstício.
Sendo eu uma amante de tudo o que é pequeno e simples, mas que pode crescer com os cuidados da arte e da afeição, será bom e saboroso, como exercício atencioso de todos os dias, manter vivas e fecundas tais verduras, que assim vão crescendo de erva silvestre e comum até serem floresta monumental.
A integridade, como “selo” original da nossa criação como seres humanos, desafianos para lá do mundo pequenino das nossas necessidades pessoais – a integridade reivindica estarmos ligados a tudo e a todos os que nos rodeiam, numa total miscigenação, na partilha da verdade, na busca da qualidade de vida entre todos.
Nesta viagem exaltante tudo conta, tudo é relevante: o que comemos, o que aprendemos, o que vivemos, indagando essa profunda realidade que nos liga ao mundo na sua diversidade, nos seus mais variados cruzamentos.
Essa tessitura feita de Encontro e Festa é talvez o único e grande segredo para não cairmos em “infernos”, para atravessarmos “purgatórios” e para estabelecermos “paraísos”, glosando Dante e a sua Divina Comédia que a Escola do Chapitô escolheu como inspiração para as criações de 2023.
Esta ascensão, que só a virtuosidade da Arte permite, é tal e qual uma “rapsódia” cantada por todos: actores, autores, produtores, professores, investigadores, construtores de madeira, de ferro, de finas filigranas e de rendas, bordadeiras, engomadeiras, taxistas, cozinheiros e cozinheiras, jardineiros, hortelãos, jovens aprendizes, profissionais do espectáculo, acrobatas, funambulistas, médicos, enfermeiros, catedráticos, sapateiros, artesãos, músicos, casados, amantes e apaixonados, padres e freiras… biliões de humanos!
Mas se cada um se cumprir, com o melhor que sabe e pode, na sua realização pessoal e profissional, o mundo será cada vez mais forte e resistente às intempéries.
Eu vou, tranquilamente livre, na minha total imperfeição, deixando que a criação me invada, correspondendo assim a uma inquietação latente!
Teresa Ricou
(Adaptado do Editorial da Agenda Chapitô Janeiro/Fevereiro 2023)
A Cerejeira
The inundation of the Spring
Enlarges every soul–
Emily Dickinson, My Letter to the World and Other Poems
E eis que do verde escuro – da paisagem de tons e disposições desniveladas –, de águas que andam fortes a Norte, subterrâneas e apartadas por dentro, por perto, surge, estava, afinal, mais perto, mas mais à frente, duas árvores sucintas e esguias, carregadas de frutos gentios e meninos. Nunca as tinha visto.
Olhei hoje a primeira quando um pássaro irrequieto passeou no céu e logo depois se inteirou de umas bolinhas vermelhas, planetas muito pequeninos, vermelho incipiente, frutos redondinhos.
A primeira bola pendia doce. Doce como estar na paixão pendida – redentora. Crescia já na sua cor uma doce cerejinha. Eu não, mas o pássaro já sabia.
Os nossos olhos são traquinas e o meu olhar andou, saltou, percorreu; como se a cerejeira estivesse nua e eu não fosse uma menina.
Conferi que havia mais frutas, menos coloridas, menos macias; estas com um tom despudorado ou mesmo atrevido como são as cores da pele, sem penas, nas galinhas, as patas nos patos ou a penugem inquieta. Cedo, nas meninas.
Vera Martins
Março/2023