O CIRCO COMO MATRIZ ANCESTRAL E ABRANGENTE

1 – O CIRCO

As Artes constituem os melhores recursos de que nós, a Humanidade, dispomos. E de entre as artes, as Artes e Ofícios do Espectáculo são, por excelência, as artes comunicativas, interactivas, muitas vezes “artes vivas” (consequentemente “efémeras”). São artes de acção comunicacional e de intervenção. Em particular as artes circenses, porque são ancestrais e as suas linguagens são múltiplas e universais. O clímax circense é propício a aberturas de espírito e de sensibilidade. É um desafio à corporalidade e às emoções em conjunção com o intelecto.
O Circo pode entender-se como a matriz ancestral e abrangente do mundo dos espectáculos. Tem-se afirmado através dos tempos como espectáculo popular e mundano, de habilidades e proezas, de magias e encantamentos, de excentricidades, de representação e humor, música, luz fantasia…pela grande variedade e diversidade de números apresentados, este espectáculo de sortilégios, cores, sons, formas, elegância, comunicação e rigor, tem uma função lúdica e imaginária, interagindo directamente com o público, provocando nele grande envolvimento e participação, o que se expressa através de comportamentos de adesão e tensão e tensão até aos limites da própria participação. 
Se explorarmos o Circo através das suas múltiplas e diversificadas experiências, dos seus padrões e valores, das suas estéticas, dos seus espaços, das suas possibilidades de movimento e relacionamento, das suas figuras e personagens carismáticas, nomeadamente a cativante figura do Palhaço, estaremos aptos a dinamizar, reviver e descobrir potencialidades individuais e colectivas, hábitos e costumes eventualmente adormecidos ou esquecidos, numa linguagem de atravessamento de culturas e de gerações que une potencialmente os mundos.

2 – UM MUNDO BOM

As Artes são uma espécie de “elixir mágico”, percebidas muitas vezes como uma coisa “meio divina”. A experiência da fruição artística reivindica uma tensão dialógica que exige muito rigor e criatividade, muita inteligência relacional para construir vínculos, pertenças e linguagens comuns, ainda que múltiplas.
Como Platão nos ensina na alegoria da caverna, tempos o poder de caminhar para a Luz. Temos o poder de tornar esta vida livre e bela e de a tornar uma maravilhosa aventura.
Também Charles Chaplin, em 1940, nos inspira e nos convoca no seu texto de “O Grande Ditador”: “Hannah, estás a ouvir-me? Onde estiveres, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol começa a romper as nuvens que se dispersam! Estamos a sair da treva para a luz! Começamos a entrar num mundo novo – um mundo melhor, onde os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e começa, afinal, a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos Hannah! A alma do homem ganhou asas e começa, afinal, a voar. Vou para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos Hannah! Ergue os olhos!”.
Em comum, lutemos por um Mundo Novo, um Mundo bom, pondo fim à ganância, ao ódio, e à prepotência. Ser artista é isso – transcender pela Beleza, pela Sabedoria e pela Bondade, a ignorância e a mesquinhez que atrasam a nossa humanidade.
A isso vos convido. Para isso estou convosco.

Teresa Ricou

(Abril de 2019)

A vida interior de uma mulher-palhaço

“O aprofundamento da vida interior já não se deixa guiar pelas evidências da história. É entregue ao risco e à criação moral do eu – de horizontes mais vastos do que a história e onde a própria história se julga”.
Emmanuel Levinas, Totalidade e Infinito
O palhaço é alguém que coloca em causa as nossas pequenas acções, o nosso quotidiano. Se ridiculariza os nossos gestos, os nossos medos, é porque tem o poder de tornar mais pequenos esses nossos medos. E assim torna-nos grandes a nós porque, afinal, até conseguimos dissecar esses medos poeticamente. E, por outro lado, torna as pequenas coisas – a nossa pequenez e mesquinhez desveladas – em algo extraordinário – a nossa vida enquanto obra de arte.
Cabe ao palhaço mostrar-nos o equilíbrio entre o nonsense e o sentido da vida porque o palhaço dá corpo ao espírito que religa mundos díspares; dá corpo ao que nos equilibra entre o mágico e o real, a comédia e o trágico.
Quando nos confrontamos com a pista de circo, imediatamente nos posicionamos perante o perigo: entre acrobatas, trapezistas e as nossas feras… As gargalhadas e lágrimas intuídas no risco lidam com emoções extremas para podermos pressentir, antecipar e até aprender a evitar o perigo. O palhaço no Circo, pelo contrário, devolve-nos uma e outra vez à infância fantástica, circulando como soberano de um domínio protegido, no meio de tantos riscos que a vida comporta. No meio de tanta força bruta e desilusão.
E assim no espectáculo nos precavemos contra a nossa própria traição, o que acontecerá em pequenas ou em grandes doses quando soubermos que não estaremos à altura de tudo o que sonhámos e que todos nós seremos ridículos, irritantes e irrisórios, tudo ao mesmo tempo. Vigiamo-nos, então, juntos em círculos. Rimos. Rir implica ter uma grelha analítica para a vida pois inclui saber o que não é risível: a humilhação dos mais fracos, o sofrimento de quem está ao nosso lado, a indignidade colectiva subjacente ao mau uso do poder. Rir a sério é sempre da nossa seriedade e posição.
Paulo Cunha e Silva escreveu, num jornal a 23 de novembro de 2003, que sentiu “aquele fascínio pela domesticação do medo que os domadores de leões exibiam” quando viu a Tété mulher-palhaço pela primeira vez. A Tété apareceu para domesticar o medo de ser mulher. Arrisco dizer que, no Chapitô, agora mesmo se aprende a superação do medo, valentemente, todos os dias, em cada recanto. A nova possibilidade de uma Tété que se apresenta como partilha de subjectividades foi a coragem de dar visibilidade a uma alegria consciente – o acolhimento feminino de muitas maneiras de estar. A única recusa absoluta é a de que somos seres para a fatalidade e para a morte.
A mulher-palhaço domesticou-se, à vida entre quatro paredes, à galinha Mariana, às suas tradicionais saias brancas, às ruínas da Costa do Castelo e anunciou-se para além da carícia, da ternura, dos beijos, do erotismo das mulheres. Foi mais visível na mulher-palhaço o sério poder de uma mulher se transformar numa Casa, de anunciar gargalhadas e conviver com a tragédia. Sempre com os horizontes mais vastos do que aqueles a que estamos habituados: os da história.

Vera Martins 

11/01/2022