ARTES DE RUA - Já não há praças com saltimbancos

Comemorou-se o Dia da Europa, chamaram-se “palhaços e acrobatas” de toda a Europa, encheram-se durante três dias os jardins e espaços públicos do Centro Cultural de Belém, celebraram-se as artes de rua, criação da mítica Europa. Durante três dias as artes saíram à rua. No resto do ano, as artes de rua ficam em casa. Pelo menos, em Portugal. Já não é dia da Europa, já não há ruas animadas por artistas, já não há praças com saltimbancos.

Porque não aproveitarmos a experiência dos nossos parceiros europeus, como a França, que desenvolve há muitos anos o conceito democrático das artes de rua como manifestação cultural de qualidade para o grande público? Porque não desenvolvermos de forma ordenada e criativa a animação dos nossos espaços públicos, que são de todos nós por direito e dever? Porque não organizarmos verdadeiros festivais de rua – à semelhança do que acontece em França com o patrocínio da Associação Hors Les Murs que promoveu mais de uma centena de eventos de cultura de rua, como por exemplo o Festival Off de Chalon-Sur-Saône, Festival de Aurillac, Festival de Viva Cité, entre outros – proporcionando espectáculos dos mais clássicos aos mais contemporâneos, abrangendo todos os tipos de público? Será que alguma vez conseguiremos satisfazer as ansiedades culturais do público português?

O grande desafio para Portugal, para os grandes centros urbanos e não só – na medida em que o espectáculo de rua é por excelência itinerante, deslocando-se de terra em terra, levando a cultura e (porque não dizer?) a educação a todo o lado –, reside numa reflexão de como invadir criativamente as ruas, devolvendo aos cidadãos esse espaço vital da cidadania, mas para isso é necessário uma vontade política de o fazer, é necessária uma coordenação entre o Governo central, as autarquias e as estruturas artísticas, criando uma programação de acordo com as estações do ano, que respeite os critérios de entretenimento, formação e viabilidade económica das performances. Desta forma, conseguiríamos responder a um público turístico, à população em geral e, sobretudo, estimular, sensibilizar e ocupar os jovens, tornando a via pública num espaço de responsabilização dos jovens cidadãos.

Confrontamo-nos assim com este novo território de exploração artística e de cidadania, habituando a população a estas práticas e educando para a cultura sem constrangimentos. Os espectáculos que se disponibilizam – e proporcionam momentos de lazer na rua –, não devem ser, de certeza, os parentes pobres do Ministério da Cultura, mas, ao contrário, devem ser considerados e entendidos actos de criação e difusão da cultura. Certamente que o Ministério terá de intervir, para além dos lugares e das formas mais clássicas do teatro e da música, considerando as artes de rua como uma arte maior que ocupa a via pública como uma saída democrática da cultura; aos artistas cabe a responsabilidade deles próprios, tanto em caso de acidente como no que se refere ao indispensável respeito pelos transeuntes e espectadores.

Ao longo destes anos têm nascido grupos artísticos de intervenção de rua, um deles o Chapitô, que bem tem demonstrado a sua capacidade de animar e educar o público, desde a Capital da Cultura 94 até à participação nos mais diferentes festivais de norte a sul do país, afirmando-se como agente cultural de relevo e contribuindo para a discussão do papel das artes de rua na nossa cultura.

Ainda temos muito que caminhar, mas, aos poucos, vamos levando a cultura às nossas ruas vazias de fruição.

Teresa Ricou

O Renascimento da rua

Os tempos de pandemia fizeram-nos sentir a falta de tudo aquilo a que – agora sabemos – damos tanto valor. Poder ir à rua beber um café – cumprimentar e ser cumprimentado, socializando – e passear pela montra viva que é Lisboa, ser surpreendido com muitas coisas, por exemplo: dar de caras com velhas campainhas nos prédios que testemunham outros tempos, outras hierarquias no habitar, pondo a nu verdades e efabulações. Tudo isto com uma breve ida à rua. Depois, qualquer um de nós pode ir flutuar no jardim do Torel, deitar-se no jardim da Gulbenkian, sorrir aos legumes que crescem na horta da Quinta Pedagógica. Podemos ainda partilhar o pôr-do-sol com skaters no miradouro infinito de Santa Luzia – faz lembrar Basquiat e a cidade de Nova Iorque acolhendo a irreverência criadora.

Tudo isto é o espaço acessível a todos na cidade. É isto a rua? O que é para nós a rua?

É um espaço vital de cidadania que permite concretizar uma saudável ambição de universalidade.

Na rua, na praça pública do centro urbano, afastámo-nos de laços anteriores ao Estado, sejam eles a pertença exclusiva ao grupo primário (a família) ou aos antigos vínculos feudais. Pretendia-se que estes novos laços que se estabelecem entre cidadãos nos tornassem mais universais, menos egoístas, mais interdependentes e vinculados ao próximo.

E não corremos hoje o risco de viver uma universalidade demasiado abstracta? Em que nos sentimos inábeis na empatia para com os nossos concidadãos… Se nas nossas cidades estiverem presentes as convicções e práticas partilhadas, alicerçadas no respeito pela diferença, então sentiremos que nas nossas ruas a pluralidade e a coexistência de interesses muito diversos ainda é possível.

E quase apetece dizer: numa rua em festa, então aí, a poesia torna-se tão visível. Há poesia enquanto ruptura com a linguagem do quotidiano e há ruptura até com a linguagem da ciência (a observação e racionalidade). Assim, a festa das artes na rua – a poesia na rua – é profundamente subversiva ao revelar o lado mais oculto das coisas. Por isso, Sophia revelou o lado oculto de um regime – em 1974 – quando nos explicou que foi a substância inteira de um povo que se manifestou.

Será possível tornar a via pública num espaço de pertença e responsabilização dos jovens cidadãos? Será este o Renascimento da praça pública? Todos os Renascimentos são inesperados e por isso novas formas de associação que escapam à linguagem técnica dos especialistas serão possíveis. Para o Chapitô, a arte na rua tem sido uma utopia realizada.

E podem as artes de rua ser um mercado? Não nos enganemos, o mercado é a obra primeira do Estado – foi o Estado que construiu o mercado nacional. Criar um mercado – um espaço económico unificado foi – Karl Polanyi explica-o em “A Grande Transformação” – o trabalho do Estado, à época inspirado na teoria mercantilista. Cabe-lhe estruturar o espaço de acção de um mercado, favorecendo dinâmicas criadoras e permitindo a igualdade de oportunidades.

Se não encontrarmos um compromisso na rua, aí encontraremos a violência entre lógicas fortes que se opõem: Estados glorificadores da grandeza, capazes de medo, opressão e, claro, violência, mas encontraremos também a violência entre privados, esmagando-se os mais fracos. Na cultura de rua podemos ver a abertura criativa para novos sistemas de referência entre lógicas rivais – onde se possa afinal ver – com espectáculo! – a força moral das muitas conquistas das democracias modernas.
Vera Martins 16/07/2021