CONTRA TODAS AS ADVERSIDADES

1.
HUMANIZAR como atitude e estado de espírito, o que implica sensibilidade, conhecimentos, aptidões e gosto em lidar com gente, muito especialmente com jovens, em sequências intermináveis de boas práticas.
O sistema da chamada “reinserção social”, tal como ele existe e como funciona actualmente, não responde nem às necessidades “intrínsecas” dos seus destinatários, nem às exigências civilizacionais do século XXI. 
É urgente repensá-lo. 
Aqueles(as) cidadãos(ãs), com idades jovens, que se encontram tutelados e sob internamento são um “núcleo duro” e uma “amostra” de como se estão a produzir os sentidos de cidadania das novas gerações que vão ser protagonistas deste século. 
Será que as mudanças do século poderão ter alguma conexão mágica e simbólica com a possibilidade de mutações? É que os 50 anos já passados da Declaração Universal dos Direitos do Homem ainda não foram suficientes para se conseguir, ao menos, que não existam exclusões precoces e que se contrariem as infâncias “malfadadas”. 
De vez em quando, as pessoas da chamada “opinião pública” assustam-se e às vezes até se alertam com os problemas das crianças e jovens ao “Deus dará” e com os seus abandonos e delinquências. Será que acontece a muitas pessoas habituarem-se à ideia de que esses “males” fazem parte dos ambientes urbanos e metropolitanos?
Haverá a percepção da real existência de lixeiras e periferias degradadas e desordenadas, favoráveis a estes “bichos dos meandros”? As pessoas desresponsabilizam-se porque existe a obrigação do Estado na “reinserção social”. No meio de muitas contingências, o Estado-Tutela. Mas a maneira como tudo funciona diz-me e rediz-me que o “Estado-Tutela não tem jeito ou vocação para educar. Acaba por tutelar as desigualdades e a reprodução da exclusão. Estamos perante um sub-sistema deprimido da democracia e do chamado “Estado de Direito”.
Mais do que educar (“moldar”) preconizo que se ensine a viver numa sociedade que queremos que seja, e se construa, inter-activa, participativa, solidária, multicultural.
Pronuncio-me com o à-vontade de quem trabalha há muitos anos para melhorar todas as má-sortes que estão envolvidas neste sarilho. Primeiro que tudo as artes que são os meus eleitos privilegiados: aqueles e aquelas que vão conseguindo ser gente contra todas as adversidades.
E depois as sortes do sistema, com as suas estruturas e agentes. Nós, os que nos metemos ao barulho, andamos sempre a inventar maneiras de enganar os destinos e de manter abertos alguns espaços alternativos de manobra. Somos realistas e portanto temos que saber intervir por dentro do sistema. É um empreendimento muito difícil, muito duro, muito ingrato e muito solitário. O futuro há-de ser diferente e mais desejável. Eu e os meus procuramos adiantar esse retardado futuro.
© António Marciano
 
2.
Com todos os casos de tutelados que vão existindo, todos em idades de tempo útil, não seria lógico e civilizacional que se encontrassem soluções extraordinárias e exemplares para estes casos de “maldição” perversa e injusta nas infâncias e adolescências?
A postura que defendo perante esta realidade combina muita atenção compreensiva com a firmeza nos princípios e exige serenidade e honestidade nos relacionamentos, com os jovens e entre os adultos responsáveis. Temos a obrigação de descobrir formas dignificantes para a socialização e aculturação destes cidadãos do mundo, com os seus direitos e deveres. Só que para se poder usar direitos e deveres é preciso ter tido, e continuar a ter, “calor humano”. É nas humanizações que o sistema falha. E, lá no fundo, todos sabemos que nas Humanizações é que está o segredo e que “a vida é feita dessas pequenas coisas”.
A educação destas pessoas (tendencialmente “malfadadas” à partida) não pode ser simplesmente um processo administrativo, nem simplesmente um suporte de protecção elementar: cama, mesa, roupa lavada, instrução.
O controle e o ordenamento é que mandam. Também, lá no fundo, sabemos que o ambiente educativo pressupões um fluir afectivo que é especialmente complexo e susceptível nestes casos de enorme carência, por vezes à deriva.
Sempre com muito rigor e seriedade no relacionamento, na exigência de qualidade.
As crianças e jovens que têm suporte familiar regular, têm direito à dedicação e à felicidade recorrentes. Os menores em situação de tutela têm tão-somente a obrigação de se manterem “nos eixos” do sistema. De vez em quando, pode acontecer que, aleatoriamente, recebam uma espécie de prémios, o que tranquiliza a consciência dos adultos.
Ou então escapam-se às malhas do sistema e optam por continuar à deriva, até ver e enquanto der. Algo vai mal no mundo da justiça social. O pior é que os poderes instituídos (políticos e técnicos) são condescendentes, quando não cegos e mudos, nas avaliações e supervisões que praticam sobre o sistema. E a saturada “opinião pública” só desperta de tempos a tempos, nas vagas de algum movimento “mutante”. A verdade é que todos estes jovens, dão emprego a muita gente e justificam vários equipamentos. Quanto gastará, em bruto, o Estado com este “labirinto”? Com a massa de recursos que estão envolvidos não se deveriam, e poderiam, fazer maravilhas?
 
© António Marciano

3.

Perturbo-me quando ouço falar destes excepcionais cidadãos e cidadãs de formas levianas e arbitrárias, com um olhar realmente “colonizador” e até “castigador”, o que infelizmente me acontece com alguma frequência, em conversas e mesmo nas ressonâncias que apanho pela comunicação social. Pergunto-me, várias vezes, se este sistema das tutelas, com a sua história pesada, não será favorável a recalcamentos e traumatizações perversas, em vez de serem espaços com um sistema de estímulo e desafio positivo à descoberta das competências de cada um. Todos temos um manancial de capacidades para nos desenvolvermos, mas há muitos que não tiveram, ou não têm, os seus devidos espaços de oportunidades. Essa obrigação pesa-nos.
Estas crianças e jovens são muito mais difíceis de socializar e educar. Têm muitos problemas acumulados e não resolvidos. Têm muitos traumas. As tácticas de sobrevivência vão-lhes impedindo a capacidade de estruturação e de poder estratégico. Evidentemente que acredito que é possível e imperioso enfrentar esta aposta. Acredito e estou sempre a praticar. Chego mesmo a achar que “tudo o que venha à rede é peixe”, ou seja, todos os contributos e dádivas são sempre bem-vindos.
Quando o mundo começar a ser como é suposto e desejável que venha a ser, tenho a certeza de que todos os cuidados serão poucos para definir os perfis dos educadores para estes tipos de intervenção muito delicada, bem como para a sua selecção e rotatividade. Tenho também a certeza de que, cada vez mais, se encontrarão soluções mais humanistas e mais “micro”, o que será um grande investimento (sem recurso sistemático à experiência e à vivência concentracionária e totalitária).
As respostas modernas e desejáveis são cada vez mais casuísticas, com consideração pelas próprias pessoas, mas neste domínio das tutelas ainda predomina a infeliz “chapa 33”. As contrariedades persistentes não estão só nas histórias de vida dos jovens, também estão nas lógicas do sistema que os pretende colocar “nos eixos”. Admiro-me sempre com o facto de os educadores e os técnicos do social serem, na grande maioria, tão silenciosos e passivos nestas matérias. E também me parece sempre que os políticos não querem ver nada disto. Disfarçam e assobiam. Parecem atados entre as lógicas de repressão e as justiças. Quando é tudo uma profunda questão filosófica e educacional.
© António Marciano
Teresa Ricou

Canção aos Novos – Cantai o amor do mundo*

Como debaixo dos pés de cada geração que passa na terra dormem as cinzas de muitas gerações que a precederam, assim debaixo dos fundamentos de cada cidade grande e populosa das velhas nações da Europa jazem alastrados os ossos da cidade que precedeu a que existe. 

Alexandre Herculano, O Monasticon, Tomo II

Se o espírito das crianças, a exigente protecção das crianças, floriu no 25 de Abril de 1974, como está hoje? O que dizemos hoje às crianças ou, pior ainda, aos jovens? Que sonhos? Dizemos-lhes: que sejam silenciosos, que é preciso observar os tempos e ser calculista. Que não há tempo a perder com os que estão mais perdidos do que eles. Na verdade, as carreiras estão parecidas com lampreias: caras e fugidias. Na Costa do Castelo, em Lisboa, ainda há jovens num farol, alguns com cabelos às cores, correias por todo o lado, furos, feridas – verdes e azuis, se as oferecermos a Chagall – brincos por ali acima e brincos por ali abaixo, cintos rotos que rivalizam com a cidade: o edificado à procura de sentido. Não nos esqueçam, vocês na Câmara Municipal de Lisboa, nem Presidente Marcelo, nós somos a abertura aos bárbaros, ao Sul. Sim, há um poema de Konstantinos Kaváfis que os ama mais do que nós. A putativa Europa, essa certinha, poderá encolher com tanta alta cultura e afunilar num buraco de 25 cm. Nós, no farol, mostramos que não está tudo bem por aqui, os certinhos sem periferias não cavalgam com a Arte!
Fechámo-nos em museus? Já não apreciamos tendas nem palhaços? Não fazemos fogueiras? As canções estão sozinhas: não devem amar palavras e sonhos nem cantar alto o tal amor do mundo. Nós dizemos que o digital não será vencido, mas vejam como por enquanto não nos ajuda a viver melhor. Sentimo-nos revoltados, alguns encurralados na imperceptível e uníssona moderna tristeza que nos cola aos écrans. Mas nós juntos somos barulhentos, somos uma aura brilhante na encosta a fazer pendant com o brilho do Tejo e do mar. Somos admirados por velhas fragatas com o casco roto. A nossa juventude brilha quando fazemos coisas juntos, escavamos talento com a vontade do nosso corpo. Olhem como o nosso corpo até ficou mais indomável do que a nossa vontade. As nossas coxas, a nossa voz, os nossos antebraços em acção.
Vocês esqueceram-se que tínhamos o nosso corpo a espreitar pelos telhados: nós rodopiamos, seguramo-nos por um pé, por uma mão, desfilamos no curto trajecto da cantina. É bela a nossa cantina! Podíamos fazer mais por Bruxelas, transformá-la numa europeia cantina! Farejamos pessoas com essa luz do viver-juntos. É isso que queremos! Estamos cheios de defeitos, mas sem muros altos, um defeito muito maior. Nesta escola cirandam por aí bebés e outros como nós, mas que erraram, abusaram da liberdade e carregam um castigo. Queremo-los de volta, conscientes de que todos somos poucos para resgatar agora os bárbaros do poema. A nossa grandeza ficou séria? Ficou pequena? Vemos grandeza por toda a parte.
Alunos e professores da Escola do Circo do Chapitô que participaram nas comemorações do 9.º Aniversário da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais em 2021, no Centro Educativo Padre António Oliveira, em Caxias, que contaram com a presença da Ministra da Justiça,  Secretário de Estado Adjunto e da Justiça e Secretária de Estado da Justiça.

Vera Martins 

22/10/2021

*Título retirado da canção “(Agora) Canção aos Novos”, com letra e música de Pedro Ayres Magalhães que aqui se reproduz: 

Canto
à minha idade, ó ai,
Canto às cores que ainda são,
E ao amor que me dão
As manhãs deste mundo,
São,
Janelas para ver,
São ainda,
São
Vontades de ter
Um mundo sem armas
Na mão

Canto
esta verdade, ó ai,
Canto à luz do meu sol,
Sol do meu mundo inteiro
Que queria guardar, ó ai,
Guardar para ti
Ter na mão e dar
Dar-te logo a ti
Mas há tantas armas aí…

– e eu, que força tenho?
– e tu que força tens?
– temos a voz só, cantamos alto,
– a nossa voz só, canta bem alto

Éagora, é a hora
É agora, é a hora

Cantai
de madrugada
Até ao sol raiar
Levai a vida boa
Cantai sempre cantai
E a cada pessoa
Cantai esta canção
Lembrai ao mundo inteiro
A sua condição

E assim cantai também
Como eu sempre cantei
Cantai o amor do mundo
E tudo o que está bem
Cantai a viva voz
Pela terra inteira
E assim se ensina a paz
Da melhor maneira